Comunidades terapêuticas têm R$ 56 mi previstos em emendas – 18/05/2024 – Equilíbrio e Saúde


O governo federal prevê em orçamento o valor de R$ 56 milhões somente em emendas parlamentares para a ação que alimenta as comunidades terapêuticas (CTs), entidades privadas voltadas para o tratamento de dependentes de álcool e outras drogas que se baseiam na abstinência e na laborterapia (trabalho geralmente não remunerado) como método de cura.

O valor corresponde a 86% da dotação que foi prevista no ano de 2023 (R$ 65,1 milhões) e não abrange emendas de bancada e de comissões temáticas, apenas emendas individuais. Dos R$ 56 milhões, R$ 6,97 milhões já foram empenhados para a ação.

As CTs costumam ter como um dos pilares de tratamento práticas religiosas em detrimento de terapias psicológicas. Até março, o governo financiava 262 unidades por meio do MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome), das quais 61 teriam contrato encerrado entre abril e julho, conforme a Folha obteve via lei de acesso à informação.

Boa parte das que constam na lista de financiadas têm nomes que remetem a religiões cristãs, como a Associação Cristã Alfa, Projeto Criação de Deus, Instituto Abba Pai, Associação Missionária Evangélica Vida e Associação Comunitária Bom Samaritano.

Pelo orçamento do Ministério da Saúde, ações voltadas para a estruturação de unidades de atenção especializada à saúde e para a implementação de políticas de atenção especializada para a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), por exemplo, tiveram autorizados, respectivamente, R$ 10,4 milhões e R$ 107 milhões em 2024, até então.

Para 2023, os valores previstos eram de R$ 57,9 milhões para estruturação de unidades e R$ 14,3 milhões para implementação de políticas. Nem todo valor previsto é, necessariamente, empenhado ou pago.

Embora tenha sido sob a gestão Jair Bolsonaro que as CTs viraram as principais operadoras das políticas públicas para tratamento de dependentes químicos, a continuidade do financiamento pelo governo Lula, mesmo que em menor quantidade, é questionada por especialistas.

Entidades como o CFP (Conselho Federal de Psicologia) apontam que práticas comumente mantidas pelas comunidades funcionam no sentido contrário a políticas antimanicomiais. A Lei nº 10.216/2001 conhecida como Lei Antimanicomial diz que é “vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares”.

De acordo com o presidente do CFP, Pedro Paulo Bicalho, inspeções feitas em parceria com o MPF (Ministério Público Federal) e com o MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura) foram fundamentais para que o CFP construísse uma posição contrária às CTs.

“As comunidades produzem, em vez de acolhimento, isolamento social. É a forma de funcionar dos manicômios. Para nós, a laborterapia não é uma modalidade de cuidado, mas se aproxima do trabalho análogo à escravidão”, afirma.

Em 16 dos 28 locais inspecionados, de acordo com relatório feito em 2017, foram identificadas situações de sanções e punições, com práticas que variam entre a obrigatoriedade da execução de tarefas repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições e o uso de violência física. O documento concluiu que há fortes indícios de desrespeitos aos direitos individuais e de práticas que podem ser entendidas como tortura nesses locais.

Já um relatório do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicado no mesmo ano mapeou o perfil das CTs brasileiras e mostrou que, em muitas delas, foram tomadas ações punitivas, destinadas apenas a constranger pessoas desviantes das regras.

Para o defensor público do Estado de São Paulo, Raul Carvalho Nin, as comunidades não são uma forma de tratamento, mas uma terapêutica punitiva. “São uma forma de punição ocorrida fora oficialmente do sistema penal”, diz o mestre em direito penal e criminologia pela USP (Universidade de São Paulo). Ambos os relatórios foram usados por ele para sua dissertação, terminada em 2021, que trata de internações forçadas de usuários de drogas.

Segundo o documento do Ipea, as sanções mais declaradas pelas CTs — que responderam ao questionário de forma voluntária — como aplicáveis foram advertência oral (89%), comunicação à família ou pessoa de referência (69%) e advertência por escrito (58%). Segundo o documento, as situações evidenciam que as pessoas são percebidas como incapazes de se responsabilizar por seus próprios atos.

Além dessas, a suspensão de contatos telefônicos com familiares e amigos foi praticada por 22% das CTs, o aumento temporário das atividades de laborterapia foi mencionada por 16%, e o afastamento temporário dos demais acolhidos, caso não obedecessem às regras, a 7,5% de um total de 2.000 CTs.

“Essa forma de tratamento que é feita nas comunidades terapêuticas, o confinamento e todas as formas de atendimento aproximam as comunidades das chamadas instituições totais”, diz Nin.

Ainda segundo Mônica Nunes, psiquiatra e professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Universidade Federal da Bahia), o sofrimento psíquico é causado por questões sociais e culturais e, portanto, o isolamento atende a um interesse da sociedade, mas não ajuda o paciente.

“Qualquer sistema fechado, qualquer sistema que acaba perdendo a capacidade de ter um controle social de fora, tende progressivamente a criar certas práticas inadequadas, de violação, de abuso. É nesse sentido que a comunidade terapêutica representa o ressurgimento do manicômio que lutamos para que deixe de existir. Se o sistema público oferece algo melhor, as pessoas vão optar por isso”, diz Nunes.

Essas foram situações pelas quais Eduardo Real, 36, passou ao longo dos seis anos em que esteve internado em 14 comunidades diferentes. Ele foi levado pela primeira vez de forma involuntária pela família após receberem a indicação de que um pastor, dono de uma CT. “Ofereceram para minha família o tratamento para o vício em drogas e a cura gay. Na época, fui levado para lá medicado, contra minha vontade”, relata.

Nessa comunidade, segundo Real, não havia psicólogos, mas os cultos eram obrigatórios. “Só tinha uma pessoa sendo paga para trabalhar lá. Era tipo um capataz que aplicava disciplinas, junto com outros pacientes, que eram monitores. Eu também via muitos espancamentos contra pessoas que tentavam fugir, e eu já fui agredido. A comida era estragada, sei porque trabalhei na cozinha”, diz.

Sua família passou a ter dificuldade de pagar e ele saiu do local. Em casa, recebia ameaças de que seria internado novamente. “Saí de lá destruído psicologicamente e fisicamente. E essa ameaça foi minha porta de entrada para o crack.”

Ao longo do tempo, entre recaídas e melhoras, passou por outras 13 comunidades em busca de ajuda. Ele relata que em apenas cinco havia algum tipo de acompanhamento psicológico. “E, geralmente, passavam a cada 15 dias, davam consultas breves e iam embora. Os psiquiatras só passavam remédios”, diz.

Hoje, aluno da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidades de São Paulo), Eduardo diz que o tratamento em liberdade no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) Álcool e Drogas de Osasco o ajudou a estar, há três anos, abstêmio. “Agora estou aqui para discutir políticas públicas no campo do álcool, das drogas e da saúde mental.”

Financiamento e fiscalização

A base legal do financiamento é alvo de questionamento do MNPCT, ligado administrativamente ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, uma vez que as CTs não fazem parte nem do SUS (Sistema Único de Saúde), nem do SUAS (Sistema Único de Assistência Social).

Segundo Carolina Barreto Lemos, coordenadora do MNPCT, as entidades estão em um limbo do ponto de vista jurídico e da fiscalização.

“Ao mesmo tempo, a gente tem que pensar que esse financiamento público deveria estar ocorrendo para os serviços, tanto de assistência social quanto de saúde, voltados às pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. Então, por que se privilegiar instituições privadas em detrimento daqueles equipamentos que são públicos?”.

No ano passado, o MDS publicou a portaria 926/2023, que estabelece que a fiscalização a essas comunidades pode ser feita de forma remota. A mesma portaria permite que o órgão fiscalizador possa contratar terceiros como forma de aprimorar a fiscalização sobre entidades contratadas.

Procurado, o ministério afirmou que as fiscalizações remotas acontecem de forma complementar às feitas in loco. “Havendo necessidade de simples averiguações, torna-se mais célere e econômica a fiscalização remota”, afirma a nota. Diz ainda que a fiscalização contratual é de competência do MDS, o qual tem apoio da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais para monitoramentos.

Segundo o órgão, o MDS mantém controle rígido das entidades que prestam serviços de acolhimento e têm contratos firmados com o ministério e que, em caso de constatação de violações de direitos ou suspeitas de crimes, “de imediato, são comunicados aos órgãos competentes, sem prejuízo de abertura imediata de processo administrativo sancionador nos termos legais”.

Por fim, o órgão informou que o direcionamento de emendas é realizado pelos próprios congressistas, e não há participação do MDS nas decisões para onde se destinam os recursos, cabendo apenas a gestão dos instrumentos de repasses.



Fonte: Folha de São Paulo

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