O presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), Angelo Vattimo, afirmou que o órgão acessou mais de cem prontuários de pacientes que realizaram abortos no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital paulista, e que alguns dos abortos aparentam ser ilegais. Ele fez a declaração sem dar detalhes ou provas da ilegalidade dos procedimentos.
Vattimo foi ouvido na audiência da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Violência e Assédio Sexual Contra Mulheres sobre questões relacionadas ao aborto legal, em uma intimação feita pela vereadora Silvia Ferraro (PSOL).
No início do mês, a Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o acesso da Prefeitura de São Paulo a dados sigilosos de pacientes que fizeram aborto legal no Vila Nova Cachoeirinha. Em dezembro do ano passado, a prefeitura suspendeu procedimentos de interrupção de gestação para casos previstos em lei.
O aborto é permitido no Brasil em casos de estupro, risco de vida para a gestante e quando o feto é anencéfalo. Em todos esses cenários, segundo a Constituição, não existe nenhuma restrição para a idade gestacional do feto no momento do aborto.
Vattimo afirmou que hospitais não podem disponibilizar prontuários para a polícia ou para o Ministério Público sem ordem judicial, mas que a fiscalização do Cremesp pode acessar os prontuários sem necessidade de registro de ofício.
Raphael Câmara Parente, autor da resolução do CFM que proíbe a assistolia fetal, disse que os órgãos regulatórios da classe médica têm essa prerrogativa.
Tanto o Cremesp quanto o CFM (Conselho Federal de Medicina) haviam sido intimados no início do mês a prestar esclarecimentos na CPI sobre a suspensão do serviço de aborto legal no Vila Nova Cachoeirinha e sobre a resolução que proíbe a assistolia fetal em casos de gestação advinda de estupro. Em casos de risco à vida da mãe e anencefalia fetal, o procedimento continuava válido sem sanção aos médicos.
O Cachoeirinha era o hospital de referência, em São Paulo, para a realização de abortos a partir de 22 semanas de gestação e ao menos duas médicas da instituição foram processadas pelo Cremesp e tiveram seus registros suspensos.
Silvia Ferraro, do PSOL, afirma que é necessário investigar o acesso aos prontuários, que levou à suspensão das médicas, uma vez que foi feito “sem justificativa”. Ela diz que a decisão do órgão de procurar esses prontuários veio com uma intenção ideológica.
A presidente da mesa, Sandra Tadeu (PL), afirmou que as médicas devem ser ouvidas nas próximas sessões. Ela não citou os nomes das profissionais quando anunciou a intimação. Hoje, o processo do Cremesp é sigiloso e o requerimento de oitiva precisa ser nominal, lembra Ferraro.
A CPI correu com diversas interrupções por ativistas favoráveis ao direito ao aborto e também contrários. O vereador Rubinho Nunes (União Brasil), que não faz parte da comissão da CPI, interrompeu a presidente da mesa diversas vezes sugerindo que os ativistas pró-direito ao aborto, aos quais se referiu como “assassinos de bebês”, fossem retirados da sala, mas que os contrários ao procedimentos fossem mantidos.
A assistolia fetal foi o tema que abriu a sessão, com o depoimento de Raphael Câmara Parente, em nome do CFM. O procedimento é recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) para casos acima de 20 semanas e é tido pelos protocolos nacionais e internacionais de obstetrícia como a melhor prática nesses casos.
A oitiva ocorreu num cenário diferente daquele em que foi solicitada, já que, na última sexta-feira (17), o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu a resolução do CFM até apreciação no plenário da corte, a partir de 31 de maio.
Para Moraes, “o CFM aparentemente se distancia de standards científicos compartilhados pela comunidade internacional, e transborda do poder regulamentar inerente ao seu próprio regime autárquico”.
Câmara exibiu um vídeo sobre o funcionamento da assistolia fetal feito pela médica Patti Giebink, ginecologista autora do livro “Unexpected Choice: an abortion doctor’s journey to pro-life”, algo como escolha inesperada: a jornada de médica que faz aborto para o ativismo pró-vida, termo usado por quem é contrário ao direito das mulheres de acessar o aborto.
O médico afirmou ser favorável à opção pelo aborto apenas em casos de risco à vida da gestante. Ele foi secretário de atenção primária do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e é conhecido por ser um dos responsáveis por uma cartilha que minimizava os riscos da gravidez em crianças e adolescentes. Durante a sessão da CPI, ele afirmou que gestantes de 35 anos têm mais risco de morrer do que meninas de 13.
Tanto ele quanto Angelo Vattimo, do Cremesp, afirmaram que a OMS “tem lado” e Vattimo chegou a citar que Taiwan não participa da organização porque a China exerce influência sobre o órgão.
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