Filmes ‘Divertida Mente’ mudaram a forma de fazer terapia – 08/09/2024 – Equilíbrio


Em 2012, quando começou a trabalhar como orientadora escolar, Olivia Carter usou todos os tipos de estratégias para ajudar seus alunos do ensino fundamental a entender e comunicar seus sentimentos: desenhos, charadas, associação de cores e dramatização. Mas, segundo ela, fazer isso se tornou muito mais fácil depois de 2015. Bastava que fizesse uma pergunta: “Quem viu o filme ‘Divertida Mente’?”

O sucesso cinematográfico da Pixar aborda emoções essenciais como alegria e tristeza, e a sequência de grande sucesso deste verão, “Divertida Mente 2”, foca a ansiedade. Ambos os filmes foram adotados por educadores, conselheiros, terapeutas e cuidadores como uma ferramenta incomparável para ajudar as pessoas a se compreenderem.

A história dos estados de espírito que dirigem um “painel de controle” dentro da cabeça de uma garota chamada Riley tem se mostrado transformadora, segundo muitos especialistas. Eles acreditam que os dois longas de animação oferecem aos pais uma nova perspectiva sobre como administrar a turbulência do crescimento de seus filhos —no consultório, nas escolas e até mesmo no convívio diário dentro de casa.

“Usá-los como prática terapêutica se tornou um recurso referencial. Tenho gêmeos de nove anos e falamos sobre isso regularmente em casa”, disse David Langer, presidente do Conselho Americano de Psicologia Clínica Infantil e Adolescente, que também é professor de psicologia na Universidade Suffolk, em Boston.

Os fantoches de dedo que reproduziam os personagens de “Divertida Mente” eram comuns quando seus filhos eram mais novos, e se revelaram uma forma lúdica de examinar a dinâmica familiar. “A arte de ‘Divertida Mente’ está, de fato, nos ajudando a entender nosso mundo interno”, acrescentou.

isso não se aplica apenas a crianças em idade escolar. “Roubo falas do filme e as repito para adultos, sem dizer que estou citando um filme infantil”, contou Regine Galanti, psicóloga e escritora, em seu consultório em Long Island, Nova York, referindo-se ao novo longa-metragem.

O público adorou. “Divertida Mente 2” arrecadou mais de US$ 1,5 bilhão globalmente, quebrando recordes de bilheteria no gênero animação ao longo de sua exibição.

Sua influência é visível em murais temáticos espalhados pelos corredores das escolas, em planos de aula baseados nos personagens e nos muitos projetos de artesanato que os educadores normalmente propõem aos estudantes. Há também a popular exposição itinerante “Emotions at Play” (algo como “Emoções em Jogo”), desenvolvida pelo Museu da Criança de Pittsburgh, em conjunto com a Pixar, produtora dos filmes.

Desde 2021, a mostra convida os visitantes a criar “esferas de memória” brilhantes ou manter a “linha de pensamento” no caminho certo. (“Memória central”, por exemplo, é uma frase que o primeiro filme ajudou a introduzir na geração TikTok.)

Para Carter, eleita conselheira escolar nacional do ano por seu trabalho em uma escola secundária em Cape Girardeau, no Missouri, o filme forneceu uma linguagem comum e uma iconografia visual que torna concretos certos conceitos abstratos: “Uso as figuras de cada sentimento que aparecem nos filmes para que os alunos me mostrem quem está no painel de controle.” Assim como as séries “Mister Rogers”, “Vila Sésamo” e “Daniel Tigre”, os filmes “Divertida Mente” oferecem um ponto de referência comum para as famílias.

E o foco do novo filme na ansiedade, que atingiu proporções de crise entre os adolescentes, normaliza experiências que, para os jovens, poderiam parecer isolantes ou avassaladoras, tornando-as relacionáveis. “Quase todo dia, tenho de lidar com um aluno que está lutando com alguma coisa ou tendo um ataque de pânico. Esse filme é algo em que posso me apoiar por bastante tempo”, disse Carter.

Pete Docter, diretor criativo da Pixar e diretor do primeiro “Divertida Mente”, revelou recentemente em uma entrevista que nada disso foi intencional. Há cerca de 15 anos, quando os cineastas decidiram fazer um filme colocando “as emoções como personagens”, pensaram em uma nova versão dos Sete Anões. “Na época, eu só estava querendo fazer uma animação que fosse emocionante para mim”, comentou Docter.

Ele contou que, logo depois que a ideia nasceu, sentiu um bloqueio criativo; não sabia quais emoções incluir. Acontece que os psicólogos também não têm consenso sobre quantas existem. “Alguns pesquisadores dizem que existem cinco emoções; outros falam em 14”, afirmou o diretor. Dacher Keltner , professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, que trabalhou como consultor nos filmes, afirma que existem 27 categorias, mas com limites imprecisos.

Docter se lembra de que decidiu enfrentar o problema primeiro do ponto de vista artístico. “Eu disse a mim mesmo que passaria o fim de semana desenhando as emoções e pensando, como animador, a maneira de tornar cada uma delas divertida e reconhecível.” No fim, escolheu alegria (uma fada amarela brilhante), raiva (um bloco vermelho), tristeza (com pele azul e usando um suéter), medo (roxo-claro) e nojo (verde). Tabelas de cores desenvolvidas por pesquisadores, como a “roda das emoções” do psicólogo Robert Plutchik, também ajudaram.

A equipe da Pixar iniciou o trabalho utilizando, como sempre, suas experiências pessoais. Conversando com especialistas, compreendeu o significado real das emoções. “Sempre pensei na raiva como algo de que me arrependeria mais tarde, que me causaria problemas, como a raiva no trânsito ou algo assim. E então percebi que também tem a ver com justiça”, disse Docter.

“Eu me lembro de que, quando criança, me ensinaram a não ter ciúme. Mas a verdade é que o ciúme e a inveja exprimem o que você deseja. É extremamente importante ter isso em mente, especialmente para as mulheres”, disse Meg LeFauve, que foi corroterista nos dois filmes.

Tudo isso ajudou a equipe a conceituar uma coisa que os profissionais de saúde mental adoram nos dois filmes: não vilanizam nenhum sentimento. No primeiro, a líder, Alegria (na voz de Amy Poehler; no Brasil, Miá Mello) encontra espaço para a Tristeza (dublada por Phyllis Smith/Katiuscia Canoro) enquanto a garota Riley, de 11 anos, se ajusta à mudança de sua família de Minnesota para San Francisco. Em “Divetida Mente 2”, Riley acaba de se tornar uma adolescente, e novas emoções como Vergonha, Inveja e Tédio inundam seu sistema. A Ansiedade (na voz de Maya Hawke/Tatá Werneck), de cor laranja e cabelo desgrenhado, renova a percepção que Riley tem de si mesma.

“Os filmes trataram essas emoções desconfortáveis como configurações de fábrica que são necessárias para a saúde geral”, observou Lisa Damour, importante psicóloga adolescente, autora e palestrante que atuou como consultora no segundo filme e que escreveu para o “The New York Times”.

A ansiedade pode ser protetora —ela é útil e tem boas intenções, mesmo que, ocasionalmente, esteja sobrecarregada. Essa é uma lição fundamental transmitida pelo segundo filme que vai contra a ideia predominante de que devemos levar uma vida sem preocupações, frisou Damour, acrescentando: “É muito comum crianças ou pais me dizerem, com voz assustada: ‘Acho que tenho ansiedade.’ Com a mesma frequência com que me falam, respondo: ‘Claro que tem. É como você sobreviveu até chegar a este ponto.’ O sofrimento psicológico, por si só, não é motivo para preocupação. O que importa muito mais é a qualidade do enfrentamento.”

Transformar isso em uma história que fosse alegre, e não em uma sessão de terapia, foi o desafio dos cineastas, especialmente depois que o primeiro filme teve uma repercussão inesperada.

LeFauve, indicada ao Oscar com a equipe de roteiristas, se lembrou de uma psiquiatra de Los Angeles que a abordou em uma cerimônia de premiação depois do primeiro filme. “Você tornou meu trabalho muito mais fácil”, ela lhe disse. O trabalho dessa mulher era ajudar crianças a processar eventos traumáticos na mesma noite em que os vivenciaram. “Fiquei muito emocionada. Quem precisa de um Oscar depois desse depoimento? Honestamente, criar algo que pode ser usado para tratar o trauma de uma criança é incrível”, comentou a roteirista.

Entretanto, os cineastas contaram que, embora estivessem conscientes das expectativas que todos no mundo real tinham para a continuação do filme, tentaram não se concentrar nelas. (Durante o trabalho, os consultores de saúde mental dos filmes não liam o roteiro; apenas davam feedback sobre os clipes editados, enquanto o processo de animação ainda estava em andamento.) “Você não quer se embaralhar na ciência e, com isso, deixar de contar a história”, afirmou Dave Holstein, um dos roteiristas.

Em sua primeira participação em um filme da Pixar, Holstein teve em mente uma frase que Joey Mazzarino, redator-chefe do programa “Vila Sésamo”, disse a ele quando trabalharam juntos na série “Kidding”, do próprio Holstein: “Toda dor precisa de um nome.” “Visualizar um sentimento como um personagem torna muito mais fácil para uma criança falar diretamente com sua dor”, observou Holstein.

Essas técnicas também vieram das profundezas dos próprios roteiristas. No fim do filme, quando Ansiedade é exilada para uma cadeira e recebe a ordem de se preocupar com uma prova de espanhol e não com um futuro totalmente desconhecido, esse é, justamente, um comportamento típico de LeFauve. “Tenho feito isso minha vida inteira. Quando entro em uma reunião, digo: ‘Obrigada, ansiedade, sei que você está tentando me salvar. Ouço você, mas, por favor, sente-se calmamente, não vou morrer, está tudo bem. E assim dou à minha ansiedade alguma ocupação.”

Há uma cena marcante com a personagem Riley, depois de uma jogada ruim no campo de hóquei no gelo: ela sofre um ataque de pânico (algo nada típico em um filme da Disney, mas comum, mesmo para crianças pequenas, segundo especialistas). Enquanto Ansiedade gira fora de controle e congela, chorando, dentro da cabeça de Riley, a menina sai da espiral. A luz do sol entra na pista de patinação e ouvimos o som do toque de um taco batendo em um disco.

“Sabemos que ataques de pânico geralmente atingem o pico e depois diminuem. Uma técnica é, conscientemente, prestar atenção às coisas ao seu redor”, disse Galanti, a terapeuta. A percepção de imagens, sons e outras coisas ajuda as pessoas a se recompor. É isso que Riley faz no filme. E, Galanti observou com aprovação, ela voltou ao gelo mais tarde, mostrando que seus nervos não estavam no comando e que ainda podia fazer as coisas que amava. “A motivação é uma peça muito importante, porque ninguém quer fazer algo que provoque ansiedade. Portanto, qualquer coisa que motive é de enorme ajuda”, afirmou a especialista em ansiedade adolescente.

A continuação de “Divertida Mente” se beneficiou de uma nova abertura na abordagem da saúde mental e do bem-estar emocional que o primeiro filme ajudou a forjar. “Quando Riley, no filme original, diz aos pais: ‘Vocês querem que eu seja feliz, mas não sou’, era isso que eu queria dizer aos meus pais quando tinha 11 anos, mas não tive coragem”, disse LeFauve, que se descreveu como uma criança temperamental. “Mas, para minha surpresa, na estreia do filme minha filha de 12 anos se inclinou e me disse: ‘Sei com certeza do que ela está falando.'”

“Divertida Mente” chegou no momento em que educadores e cuidadores prestam mais atenção ao que é conhecido como aprendizado socioemocional, que prioriza habilidades de conexão e comunicação, reconhecendo, e não reprimindo, a sensibilidade da criança como parte do autocontrole.

Essa é uma grande mudança geracional na educação. “Tenho 35 anos; acho que nunca passamos momentos sentindo nossas emoções antes”, afirmou Carter, conselheira escolar. Isso é o que está em “Divertida Mente” e é incentivado pelos filmes: um ciclo de feedback cultural.

Para o primeiro roteiro, LeFauve usou um fato que aconteceu na pré-escola de seus filhos. Uma professora se preocupou com a melancolia de um aluno (“você se sente triste”), colocando a mão sobre a dele com compaixão. No filme, Tristeza faz o mesmo gesto com o amigo imaginário de Riley.

Para Damour, psicóloga de adolescentes, reconhecer sentimentos “parece até uma coisa mágica. Se uma pessoa confessa que está triste, de repente se sente menos triste”.

O fato de “Divertida Mente” ajudar as famílias a ter essas conversas amplifica uma de suas mensagens: aceitar nossa personalidade em todos os seus tons e suas sombras.

Anne Fullenkamp, diretora sênior de experiências criativas no Museu da Criança de Pittsburgh, testemunhou isso. Sua exposição —assim como os filmes— atrai crianças e adultos. Eles ficam juntos de frente para o painel de controle que faz parte da exposição, avaliando como equilibrar seus sentimentos. “Você vê pais e cuidadores muito emocionados. Estão entrando em contato com coisas nas quais não pensavam fazia muito tempo e seus filhos os ajudam a navegar e a chegar lá.”



Fonte: Folha de São Paulo

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