Em uma das minhas memórias mais antigas lembro de estar em cima da cama da minha mãe olhando no espelho. Com a blusa levantada e a barriga de fora, uma eu de quatro anos se encarava e chorava. “Mãe, eu sou muito gorda”, dizia enquanto segurava a pele ao redor do braço e no meio das coxas.
Cresci odiando o espelho, evitando passar por ele ou desviando o olhar a cada encontro. Ficar de calcinha e sutiã em casa, usar biquíni, roupas curtas, os braços de fora? Mesmo sozinha eram tipos de tortura às quais nunca estive disposta.
Também aos quatro me lembro de já receber críticas por ser dona deste corpo. “Você está muito gorda, precisa emagrecer, chega de comer doces”, dizia um gigante de mais de trinta anos a uma criança encolhida perto do aparador de fórmica azul da minha avó. Foi o meu pai que logo cedo me mostrou como eu estava fora de forma. E eu nunca mais esqueci, embora ele aparecesse apenas uma vez por ano. Infelizmente nem a distância me faria esquecer como eu estava inadequada para ser uma criança nos anos 1990.
Depois daquilo passei todos os próximos dias da minha infância tentando ser boa o suficiente para caber no mundo –e entendi que, em partes, é porque não cabia no mundo daquele homem que deveria me amar mas não amava, aparentemente, porque eu era gorda.
É claro que fui à piscina, tomei sol na praia, me exercitei (muito e além da conta), usei roupas curtas e coladas, mas nunca estive confortável aqui dentro. Tudo em mim era demais (e às vezes ainda é): é muito braço, é muita perna, que coxa grossa!, que bunda gigante, que tanto de carne nessa menina. Enquanto me escondia com roupas largas para ninguém perceber quão indesejável tudo isso que aparentemente era eu, também recebia olhares e comentários sexualizando esse corpo cedo demais.
No trajeto entre a casa e a escola, a faculdade, o mercadinho da esquina, numa cidade pequena ou na capital paulista, muitas palavras sobre ele. “Você nunca vai ser magra” ou “você está magra demais”. Qualquer coisa, mas sempre algo. Não foi só comigo, continua sendo com muitas meninas que assim como eu acabaram se tornando mulheres que continuam com medo de olhar no espelho e encontrar algo que não é bem aquilo que acham que deveriam ser.
Os incômodos em ser eu mesma foram tantos que, aos catorze anos, andar de ônibus me proporcionava um desconforto imenso: cada lombada na rua me deixava consciente do meu corpo que se mexia, como se mexem os corpos.
Foi só aos dezoito, quando a balança marcou o mesmo peso que tinha aos dez anos, que aceitei falar com uma psicóloga. Não do nada, não porque, por acaso, recebi uma mensagem divina ou um insight. Após vomitar todas as minhas refeições, substituindo alimentos por álcool e segurando os impulsos mais fortes de dar fim a uma dor que eu não sabia bem qual era, eu também perdi cabelos, comecei a desmaiar semanalmente na rua, parar no hospital com uma gastrite que me impossibilitaria até mesmo de andar em alguns episódios de extrema dor, eu resolvi considerar os apelos de uma pessoa próxima que desde os meus doze anos me pedia para buscar ajuda.
Pela primeira vez depois de quase uma década em negação, decidi que poderia falar sobre isso com alguém e que, talvez, não fosse razoável procurar a solução da minha vida me desfazendo de tudo o que eu comia. Entendi que não era normal passar algumas horas por semana pesquisando não apenas formas de como emagrecer absurdamente em dias, mas também estratégias para erradicar o apetite ou botar tudo para fora. Foi quando conheci blogs que exaltavam doenças como anorexia e bulimia, apelidadas com carinho por seus fieis escravos.
Na terapia descobri que eu era uma escrava da bulimia, esse transtorno que me manteve em repetição de episódios de compulsão alimentar (que exigiam pizzas inteiras), seguidos de purgação e dias de restrição. Foi muito doloroso assimilar que a imagem que meus olhos viam no espelho estava distorcida (literalmente, com o uso correto da palavra). Por acaso eu sou maluca? Eu, hein. Foram e são muitos exercícios visuais e comportamentais para assimilar que a minha cabeça infelizmente não era e ainda não é capaz de decodificar a imagem de um objeto quando este sou eu.
Quando comecei a falar com a minha psicóloga decidi abrir a boca e tratar esse assunto com todos como se ele não fosse um tabu, afinal, um tipo de transtorno que acomete cerca de 20% dos jovens não deveria ser –embora mais de uma década depois o debate tenha avançado bem pouco e as calças de cintura baixa, voltado.
Já há alguns anos deixando a comida seguir seu curso natural dentro desse corpo, por agora tenho tentado expandir esse diálogo, além de olhar no espelho uma vez ao dia e encontrar formas de me convencer que não é bem esse conjunto de órgãos que define quem eu sou.
Identificou algum sintoma ou transtorno apontados nos textos? Procure apoio psicológico. Quer conversar com a gente? Escreva para blognaotemcabimento@gmail.com
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.