Quando estava no pré natal da primeira filha, há dois anos, Denizi, 34, comunicou ao seu obstetra que queria fazer uma laqueadura —procedimento que consiste no ligamento das tubas uterinas para a esterilização feminina.
O profissional disse que, por ser muito jovem, não seria interessante realizar a cirurgia, conta a paciente. Outros dois ginecologistas tiveram a mesma opinião no último ano. Agora, ela busca uma quarta opção.
“A gente fica 100% na mão do médico. Se ele diz que não vai fazer, acabou”, afirma Denizi, que procurou consultas por um plano de saúde em Teresina (PI).
Após mudança na lei da laqueadura, que diminuiu de 25 para 21 anos a idade mínima para realizar o procedimento e extinguiu a necessidade de consentimento do parceiro, o número de cirurgias quase dobrou em todo o país. Segundo dados do Ministério da Saúde, os registros passaram de 98.625 procedimentos em 2022 para 196.682 em 2023 (aumento de 99,4%).
Mulheres com mais de 21 anos ouvidas pela reportagem, porém, relatam que ainda enfrentam dificuldades para encontrar um médico que aceite realizar a operação por, segundo elas, serem “jovens demais”. Elas têm entre 22 e 34 anos.
Independente da legislação, profissionais de saúde podem se negar a participar da intervenção caso não concordem ideologicamente com ela, conforme resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Não há, porém, nenhuma alternativa frente à recusa médica, diz Denizi.
Após comunicar o desejo de fazer a laqueadura ao médico, caso ele concorde com o procedimento, as mulheres precisam passar por uma série de etapas até a autorização para a cirurgia.
Na última quarta-feira (17), o STF (Supremo Tribunal Federal) iniciou o julgamento de uma ação do PSB (Partido Socialista Brasileiro) sobre a realização de laqueaduras e vasectomias no país. Apesar da alteração realizada em 2022, o partido considera que muito do seu texto foi mantido e pede novas mudanças, como a diminuição da idade mínima para 18 anos.
A Defensoria Pública da União também afirmou que as restrições da lei impactam as mulheres de forma mais acentuada.
Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), de março do ano passado —quando passou a valer a nova lei de laqueadura— até fevereiro deste ano, foram registradas 446 reclamações envolvendo o procedimento. Entre março de 2022 e fevereiro de 2023, foram 254.
Após passar por quase metade dos médicos do serviço público e privado de Bagé, cidade a 375 km de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a bancária Any Madeira, 24, foi encaminhada para a capital. “Alguns falavam que não queriam fazer, outros que não havia condições na cidade”, disse. Ela começou o procedimento na capital, pelo plano de saúde, em junho do ano passado, e fez a cirurgia em março último.
Segundo a lei vigente, o prazo entre a decisão pela laqueadura e a cirurgia é de no mínimo 60 dias. Nesse tempo, diz o documento, elas devem ser acompanhadas por uma equipe multidisciplinar, com vistas a “desencorajar a esterilização precoce”. Isso vale tanto para a rede pública quanto para a rede particular.
Madeira precisou de pareceres da ginecologista, de um psicólogo, assistente social, obstetra, da Unidade Materno Infantil do Hospital, da Divisão de Medicina e, por fim, do Comitê de Ética para o procedimento.
“A ginecologista só perguntou se era o que eu queria mesmo e, quando disse que sim, ela afirmou que seria trabalhoso e me entregou uma pilha de documentos para consultas com diversos profissionais.”
Segundo ela, foram vários dias de trabalho perdidos sem nenhuma assinatura. “Parecia coisa de criança, eles fugindo”, conta.
O processo de desencorajamento chegou até a sala de cirurgia. Quando já estava deitada na maca, a anestesista falou que ainda dava tempo de desistir. “Acordei com as mãos na barriga, em pânico”, diz.
Questionado sobre a premissa presente na lei, o Ministério da Saúde afirmou, em nota, que essa orientação não sugere “qualquer forma de pressão para constranger a mulher durante o período de acompanhamento pela equipe multidisciplinar, tampouco para convencê-la a desistir”.
“O uso do termo ‘desencorajar’, nesse caso, tem o sentido de alertar para um procedimento cirúrgico de ‘esterilização precoce’, que apresenta inúmeras dificuldades de reversão, caso a paciente queira ter uma gestação futura”, disse.
O termo também foi pautado pelo PSB no julgamento no Supremo. “Consideramos que o termo ‘precoce’ é dotado de subjetividade e que não cabe à equipe multidisciplinar ‘desencorajar’ o exercício de uma prerrogativa legal. O prazo de 60 dias deve servir para que a equipe multidisciplinar informe as características do procedimento cirúrgico”, afirma o texto.
Motorista de moto, Geise Ribeiro, 33, é moradora de Lavras (MG) e passou um ano fazendo o acompanhamento pelo SUS (Sistema Único de Saúde) até conseguir a autorização para a cirurgia, mas foi impedida no momento final. Ela foi encaminhada junto a outras 20 pacientes até o município de Santo Antônio do Amparo —distante 36 km de Lavras—, uma vez que sua cidade não tinha médico disponível.
“Chegou lá, o médico simplesmente falou que não ia fazer, que era contra a crença dele”, diz. Ela, no entanto, foi a única a ter o procedimento negado —também é a única sem filhos.
Se eu tenho o direito de fazer objeção de consciência, vou utilizar esse direito que é uma prerrogativa da minha profissão
Alceu Pimentel, especialista em ginecologia e obstetrícia e representante do CFM, afirma que não existe nenhum consentimento entre os médicos de que a laqueadura não é adequada. “É um procedimento extremamente adequado. Não somente para mulheres que têm enfermidades, como para aquelas que querem o seu direito, sua autonomia.”
Pimentel, entretanto, diz não concordar que mulheres com menos de 21 anos e que possuem dois filhos possam fazer a laqueadura. “Eu, como médico, acho que a lei foi permissiva nesse sentido e talvez não tenham considerado a questão do arrependimento de mulheres jovens. Lógico, a lei tem que ser obedecida, mas se eu posso fazer objeção de consciência, eu vou utilizar desse direito, que é uma prerrogativa da minha profissão.”
Thainah Larissa Botelho, 23, afirma que nunca quis ter filhos e, por isso, optou pelo ligamento. Mas, devido à dificuldade, desistiu do procedimento e colocou um DIU (dispositivo intrauterino).
“Pesquisando, vi que os médicos não querem fazer laqueadura em garotas novas e sem filhos”, conta Botelho. Ao comunicar o desejo à sua ginecologista, obteve a confirmação.
“Nessa conversa ela foi grossa como nunca antes. Riu e falou: ‘boa sorte para achar algum doutor que vai fazer a laqueadura, porque ninguém vai querer’”, conta. “Ok, é direito dela [recusar], mas debochar achei errado”.
Após fazer uma denúncia ao plano de saúde na plataforma Reclame Aqui, Botelho recebeu uma lista com cinco clínicas que poderiam realizar o procedimento.
“A assistente [do plano de saúde] disse que é muito difícil médicos que aceitem, então falou que daqueles qualquer um ia aceitar”, conta. Mas não foi o que aconteceu. Quando finalmente conseguiu uma consulta, a médica afirmou que ela tinha direito de fazer a ligadura, mas que não realizaria o procedimento.
“Ela ficou insistindo até eu desistir”, diz.
Desde 2021, a Defensoria Pública do Rio Grande do Norte registrou 50 casos envolvendo laqueaduras, parte para obtenção da consulta de avaliação na Maternidade Januário Cicco, o restante pedindo a realização da cirurgia.
A policial penal Carol Viana, 31, da cidade de Caucaia, no Ceará, conta que também parou de procurar a laqueadura após negativas. Quando contou à médica que o parceiro também não queria filhos, ela aconselhou a vasectomia. No entanto, ela quer a laqueadura como direito dela, diz.
O CFM justifica as negativas médicas com a “alta taxa” de arrependimento. Um estudo da Fiocruz, publicado em 2009, com dados de 1996, afirma que a proporção de mulheres arrependidas após o procedimento foi de 10,5%.
Segundo o ministério, qualquer conduta profissional desrespeitosa no âmbito do SUS deve ser denunciada pelo Disque Saúde (136) ou na Ouvidoria do SUS.
A ANS afirma que o planejamento familiar tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde. Denúncias podem ser feitas nos Canais de Atendimento. Reclamações sobre as condutas dos médicos também podem ser feitas ao CFM.
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