O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes concedeu liminar nesta sexta (17) para suspender a resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que restringe o aborto legal resultante de estupro após 22 semanas.
Em sua decisão, ele diz que os efeitos da resolução estão suspensos até o julgamento final da controvérsia e determina que o CFM seja comunicado e que forneça informações no prazo de dez dias.
“Após esse prazo, dê-se vista ao advogado-geral da União e ao procurador-geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, para a devida manifestação definitiva sobre a controvérsia”, escreveu o ministro.
A decisão foi proferida em uma ação proposta pela PSOL e a Anis em que afirmam que a resolução institui “tratamento discriminatório no acesso à saúde”, indo na contramão das situações previstas em lei para a realização do aborto legal no Brasil— em caso de estupro, anencefalia do feto ou que envolva risco de vida à gestante.
Eles defendem que a norma é inconstitucional por dar margem incorrer em “violação grave do direito à saúde e de acesso universal e igualitário aos serviços”.
Na opinião de Debora Diniz, fundadora da Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, ainda que em caráter liminar, a decisão é muito acertada porque resolução do CFM provocava uma instabilidade no acesso aos serviços de aborto legal no país. “Ela é uma resolução que impede o melhor tratamento de saúde e a melhor ciência.”
Conforme revelou a Folha, após a publicação da resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), serviços de aborto legal suspenderam atendimentos de mulheres e meninas com gravidezes acima de 22 semanas resultantes de estupro. Havia também um clima de medo e insegurança entre as equipes médicas.
No Brasil, embora a lei não estabeleça um limite de idade gestacional para os abortos previstos em lei (estupro, risco à saúde da mãe e casos de anencefalia), na prática, a resolução do CFM impôs esse limite.
A norma chegou a ser derrubada, mas logo depois voltou a valer. A resolução do conselho proíbe a assistolia fetal, procedimento que consiste na injeção de produtos químicos no feto para evitar que ele nasça com sinais vitais.
Ele é recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e é tido pelos protocolos nacionais e internacionais de obstetrícia como a melhor prática assistencial à mulher em casos de aborto legal acima de 20 semanas.
Segundo Debora Diniz, o procedimento é considerado padrão ouro para o cuidado de mulheres e meninas que chegam aos serviços de aborto legal tardiamente. “Os casos são muito dramáticos, de meninas em situação de violência em casa.”
Na impossibilidade de realizar o procedimento, explica Diniz, os médicos estavam vivendo uma situação de omissão de socorro ou de realizar o procedimento usando métodos não adequados que podem aumentar o risco à saúde das meninas.
Para o advogado Henderson Fürst, presidente da comissão de bioética da OAB-SP, a decisão do ministro Alexandre de Moraes é um exemplo de como o STF é o guardião da Constituição, protegendo e garantindo a efetividade dos direitos fundamentais de quem mais precisa.
“É um dia histórico. Mesmo num momento que os jornais informam um tensionamento entre os poderes, a decisão do STF comprova que seu comprometimento é com a constituição e os direitos fundamentais.”
O ginecologista e obstetra Raphael Câmara, relator da resolução, afirma que o CFM vai recorrer da decisão do ministro. “Lamentavelmente, volta a se poder matar bebê de nove meses com cloreto de potássio no coração.” Não se tem notícias de casos que chegam com 9 meses de gestação para o aborto legal.
Segundo os especialistas, 80% dos casos de abortos legais que demandam assistolia fetal se referem a crianças e adolescentes que, em geral, foram estupradas por familiares ou pessoas conhecidas –algumas há muito tempo.
Nesses casos, a gravidez geralmente só é percebida quando a barriga fica visível, por volta dos quatro, até cinco meses de gestação. E quando se recebe o diagnóstico, também há demora e mesmo negativas no encaminhamento a um serviço de aborto legal. Só 3,6% dos municípios brasileiros têm serviço de assistência ao abortamento previsto em lei.
“Os abortos tardios são consequência das barreiras que são colocadas, principalmente para as meninas menores de 14 anos e para mulheres pretas e pobres, que não recebem informações sobre o direito de encaminhamento a um serviço de assistência. Quando recebe um encaminhamento, é fora da cidade natal”, diz o obstetra Olímpio Barbosa de Moraes Filho, professor da UPE (Universidade de Pernambuco).
Dos 88 centros no país que têm de fato estrutura e equipes suficientes para realizar o aborto legal, apenas três deles, em Recife, em Uberlândia (MG) e em Salvador (BA), acolhiam mulheres com gestações acima de 22 semanas antes da resolução do CFM.
Juntos, eles fizeram no ano passado cerca de cem interrupções nessas condições. Desde que que norma do CFM passou a valer, a estimativa é que ao menos dez abortos de meninas e mulheres deixaram de ser realizados.
Nesses período, os abortos legais acima de 22 semanas ficaram restritos às outras situações previstas em lei, que não estão incluídas na resolução.
“A mulher estuprada tem que tentar um suicídio, tem que tomar veneno, ir para UTI ou ser intubada ou ter um parecer psiquiátrico para poder fazer a interrupção por risco à sua vida. Já tivemos um caso concreto desse jeito”, afirma Moraes Filho.