Já dizia a Bíblia: “No princípio, era o Verbo. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.” Para mim, o Verbo repetia que eu era “tão magrinha” antes mesmo de eu entender se era um elogio ou não.
Eu sempre fui uma pessoa “chata pra comer”, desde criança. Apesar de me empolgar com frutas, os demais alimentos pareciam sempre errados, em sabor, textura, temperatura… Com muita insistência e uma dose de raiva dos meus pais, passei a variar o cardápio, mas sempre em quantidades bem menores do que o esperado. “Essa menina come igual passarinho”, diziam.
Alguns anos mais tarde, o Verbo passou a dizer “sorte a sua que você é tão magrinha! Pode comer o que quiser, sempre”. Mas eu não comia. O hábito de ciscar o prato feito passarinho me acompanhou até a vida adulta e eu não sentia mais fome.
Desde criança eu sempre fui elogiada por duas coisas: aprendi a ler rápido e antes dos meus coleguinhas de classe e sempre fui magra. De tanto ouvir a mesma coisa, a mensagem foi aos poucos penetrando as sinapses e a autoestima em construção de uma pré-adolescente. Como de costume em brincadeiras de telefone-sem-fio, a mensagem chegou distorcida ao destinatário final. O que eu entendi foi que as únicas coisas boas em mim eram minha inteligência e minha magreza.
Você, leitor, provavelmente pode adivinhar qual foi o desfecho dessa mensagem. Fiquei viciada em validação acadêmica e com uma preocupação extrema em manter minha magreza intacta. Tive o mesmo peso dos 15 aos 22 anos e ninguém nunca me questionou. Sabor, textura e temperatura ainda incomodavam, mas menos do que a soma dos números contidos na tabela nutricional dos alimentos.
Genética, disciplina, sorte. Já ouvi de tudo para justificar a manutenção da minha silhueta. Depois de determinada idade, ninguém mais estranhou que eu não conseguia consumir uma refeição de tamanho proporcional a um adulto. “Ela é assim mesmo, come pouquinho. Sorte a dela, é assim que se mantém magrinha”.
Isso até a pandemia.
Presa em casa, como boa parte da população mundial, eu me juntei à febre de fazer exercícios constantes e em medida exagerada. “Só para passar o tempo”, eu mentia pra mim mesma. Somada a um grave episódio depressivo, eu comecei a emagrecer mais, as roupas se avolumando a medida em que eu fui diminuindo de tamanho, sumindo dentro de mim.
Foi (e é) muito difícil pedir e encontrar alguém que estivesse disposto a ajudar. Pelo histórico de comer pouquinho e o peso considerado “ideal”, ninguém percebia que tinha algo de errado. Eu já não me via representada no que via no espelho, as distorções dançando alegremente enquanto cantavam que eu tinha que compensar o pão comido com sequências de abdominais. Achei que estava ficando maluca —e, provavelmente, estava.
Foi “depois do fim do mundo”, em uma consulta em uma nutróloga que, pela primeira vez, uma profissional me disse que meu comportamento alimentar não era normal e que poderia configurar um transtorno alimentar: a anorexia. Me recomendou a outra profissional para o tratamento adequado.
Pensei em tudo que eu sabia sobre o assunto: mulheres jovens e brancas vomitando refeições e fazendo exercícios compulsivamente, esqueléticas. Não me reconheci. É engraçado que até mesmo entre os desafortunados se procure a aceitação dos pares. Eu sei que sou uma mulher magra porque é isso que me dizem e sempre me disseram, mas eu não me enxergo como tal.
Foi conversando com uma outra amiga com histórico de T.A. que percebi que a suspeita da profissional de fato fazia sentido. Contar calorias, pular refeições, procurar jeitos de comer só o necessário pra me manter de pé e fazer todas as refeições em tamanho “mini” não são, de fato, o melhor jeito de lidar com a alimentação.
Estou em tratamento para criar uma relação mais saudável com a comida. Uma das profissionais chama de “aula para aprender a comer”, pra que eu aprenda a ver as refeições como um momento não apenas necessário, mas também agradável. Tem dias mais fáceis do que os outros. A vontade de pular refeições e a figura distorcida do espelho ainda estão por aqui, assim como a pontada todas as vezes que alguém faz algum comentário sobre o meu corpo e o meu prato. Mas ficou um pouquinho mais fácil depois que alguém deu nome às coisas.
Esse blog é uma tentativa de levar informação para quem possa estar passando por um momento parecido. Para todas as crianças que foram taxadas de “frescas” e podem ter tido um problema sério de saúde negligenciado porque se encaixavam nos padrões do que se entende ser “saudável”. Para quem foi buscar informações na internet e acabou caindo num limbo pró-transtorno alimentar. Estamos juntos.
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